Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Carta aberta ao Fantástico e ao Dr. Dráuzio Varella sobre a série Autismo:
Universo Particular
Nós, integrantes do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP),
que reúne profissionais (psiquiatras, psicólogos, pediatras, neurologistas, psicanalistas,
fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos,
psicopedagogos) que trabalham no campo da saúde mental inseridos em diversas
instituições clínicas e acadêmicas disseminadas pelo Brasil, na rede pública e privada,
assistimos a série “Autismo: Universo Particular”, apresentada pelo dr. Dráuzio Varella
no Fantástico, e vimos, por meio desta, apontar o que consideramos como faltas éticas
e desconhecimentos científicos cometidos pelo programa.
Buscamos assim contribuir para com o esclarecimento à população,
favorecendo que programas jornalísticos e de divulgação científica possam trazer
informações sérias e efetivas sobre o autismo e seu tratamento, uma vez que se trata
de um tema da maior relevância para a saúde pública atual.
Seguem alguns pontos a destacar:
1. Da forma como foi conduzida, a série praticamente posiciona-se contra o SUS;
ao dizer que “nada funciona”, resulta em difamação e em uma demonstração de total
desconhecimento das inúmeras experiências de sucesso no tratamento de pessoas
com autismo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros órgãos da rede
pública de saúde e nas instituições a ele conveniadas que têm produzido relevantes
trabalhos nas terapias de autismo no Brasil.
Isso acontece em um momento crucial para o tratamento das pessoas com
autismo e seus familiares, já que estão sendo definidas políticas públicas fundamentais
destinadas a nortear o tratamento e o diagnóstico nos equipamentos do SUS (como as
lançadas no documento Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno
do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único
de Saúde/SUS – Ministério da Saúde, abril, 2013),
2. A série apresentou uma visão reducionista do autismo, especialmente quanto ao
seu diagnóstico e tratamento, ignorando as contribuições clínicas existentes, entre elas,
as advindas da concepção psicanalítica em equipe interdisciplinar desenvolvidas há
mais de 70 anos.
3. A série demonstrou desconhecimento acerca dos relevantes efeitos clínicos da
detecção e intervenção precoce ao apresentar o autismo como “incurável”. Os
progressos científicos produzidos interdisciplinarmente no campo da primeira infância
no diálogo entre psicanálise e neurociência têm revelado que os primeiros meses de
vida se caracterizam por uma extrema plasticidade neuronal, configurando
possibilidades de recuperação orgânica. Os progressos científicos demonstram também
que não nascemos com nosso organismo pronto, já que tanto a formação da
interconexão neuronal quanto a manifestação de nossa carga genética dependem de
fatores ambientais (epigenéticos), entre eles a relação com as outras pessoas como
fator fundamental para os humanos.
4. A série é questionável no que se refere à exposição das crianças. Para um
autista, esse nível de invasão recrudesce sua posição de exclusão, e nada justifica tal
atitude.
É lamentável que um programa tão assistido e com um tema que exige tanto
esclarecimento público não tenha sido capaz de apresentar os aspectos básicos para a
abordagem de um problema de saúde premente e complexo como o autismo. Ao privar
o telespectador de informações valiosas e necessárias – e conduzi-lo a uma visão
comprometida e empobrecedora –, o programa produz ainda mais sofrimento nas
famílias.
Sobre o diagnóstico precoce
A importância do diagnóstico precoce foi colocada de maneira distorcida pelo
programa. Não há dúvidas em relação à diferença que o diagnóstico precoce pode
produzir no tratamento, favorecendo-o, e toda a comunidade científica está de acordo
em relação a isso. Mas considerar, como foi feito no programa, que nos Estados Unidos
o estado da arte está mais evoluído porque o diagnóstico de autismo é realizado antes
dos três anos é um desserviço. Documento produzido pelo Ministério da Saúde em abril
deste ano – Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do
Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de
Saúde/SUS – e que segue recomendação da Organização Mundial de Saúde, afirma
(pág. 50): “Por apresentarem mais sensibilidade do que especificidade é
oficialmente indicado que o diagnóstico definitivo de Transtorno do Espectro
Autista (TEA) seja fechado a partir dos três anos, o que não desfaz o interesse da
avaliação e da intervenção o mais precoce possível, para minimizar o comprometimento
global da criança (Bursztejn et al, 2007, 2009; Shanti, 2008, Braten, 1988, Lotter,
1996)”. Antes dessa idade não se deve fechar o diagnóstico, pois ainda se trata de um
bebê em pleno processo de constituição.
Na página 54, o mesmo documento afirma: “Embora os primeiros sinais de
Transtornos do Espectro do Autismo se manifestem antes dos três anos, é a partir
dessa idade que um diagnóstico seguro e preciso pode ser feito, pois os riscos de uma
identificação equivocada (o chamado falso-positivo) são menores.” Até lá, trabalha-se
com critérios cientificamente comprovados (por pesquisas referendadas e validadas no
circuito acadêmico) de Risco Psíquico para o Desenvolvimento e Sofrimento.
Promover e propagandear em um programa televisivo de cunho jornalístico o
diagnóstico fechado de uma patologia antes do tempo recomendado pode ter o efeito
de que se deixe de investir em uma possibilidade de mudança. Essa é uma postura
irresponsável por produzir efeitos iatrogênicos, para bebês e crianças que ainda estão
em pleno processo de constituição e que, portanto, não têm um destino definido,
levando ao risco de produzir uma epidemia de autismo
Trabalho clínico interdisciplinar de referencial psicanalítico
Outro aspecto que ficou muito aquém do desejável foi a necessidade de uma discussão
interdisciplinar dos casos e a consideração da multiplicidade de fatores correlacionados
ao autismo que não se limitam a aspectos orgânicos (de genética, lesões ou
deficiências), levando o telespectador a uma visão reducionista dando a entender que
no autismo haveria uma única causa em jogo e uma única forma de tratamento: a
terapia comportamental, como caminho autossuficiente.
Para tratar de crianças e adultos com autismo, não basta descrever que
observam o mundo de forma fragmentada; é preciso dizer como é possível ajudá-los a
encontrar saídas para esse estado. Tentar “ensinar” sentimentos, como observamos na
série, também não resolve. É preciso ajudar o paciente a fazer uso das palavras a fim
de representar seus afetos para poder compartilhá-los com as outras pessoas.
O trabalho clínico interdisciplinar de referencial psicanalítico abre inúmeras
possibilidades para que cada pessoa com autismo possa construir laços sociais,
partilhar a celebração de viver e contribuir para a sociedade. Também permite que os
pais, muitas vezes desalentados pelo isolamento de seus filhos, possam ampliar a partir
das intervençoes terapêuticas os momentos de troca, contato e reconhecimento mútuo.
Favorece o processo de crescimento, desenvolvimento e constituição psíquica do filho e
possibilita que as aquisições de linguagem, aprendizagem e psicomotricidade sejam
efetivas apropriações do filho com as quais ele possa circular socialmente (na familia
ampliada, na escola, na cidade), não de um modo simplesmente adaptativo, mas guiado
fundamentalmente pelos seus interesses singulares. Quando realizado com bebês, ,
permite intervir a tempo, reduzindo enormemente e, em alguns casos, possibilitando a
remissão de traços de evitação na relação com o outro.
Questão educacional
No que tange à educação e escolarização, os integrantes do MPASP, a partir de
inúmeras experiências clínicas de inclusão bem-sucedidas, ressaltam a importância de
propiciar, sempre que for possível e benéfico para a criança, sua inclusão nas escolas
regulares, ou seja, o diagnóstico de autismo não deve configurar per se indicação de
escola especial, sob o risco de incorrer numa visão segregacionista.
Uma chance perdida
Pelo exposto acima, o Movimento Psicanálise Autismo e Saúde Pública
(MPASP), do qual fazem parte cerca de 500 profissionais que atuam em mais de 100
instituições nacionais (públicas, privadas e não governamentais), considera que a série
Autismo: Universo Particular foi um desserviço, uma chance perdida de alcançar
maciçamente o público leigo com informação de qualidade.
Mais lamentavel ainda é que a produção desse programa tenha ignorado essas
informações enviadas pelo MPASP, enquanto o programa ia ao ar, dispostos que
estávamos e estamos a colaborar com a informação nesse âmbito e ampliar a visão
reducionista exposta pelo programa.
O MPASP se coloca à disposição dos meios de comunicação para apresentar
caminhos possíveis de tratamento que não se restringem a treinamentos e possibilitam
ampliar e viabilizar os modos singulares de ser das pessoas com autismo.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública/MPASP
Informações: http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/about/